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sábado, 1 de novembro de 2014

SAUDADE

Eis a causa da angústia e indiferença que, a cada pedaço do dia, vem consumindo Beto avassaladoramente. O rapaz, intelectual que é, a princípio, pensou ser nostalgia. Verificou que nostalgia é algo poético, não é o caso. Seu mal é cru, tem gosto de rejeição. Então, prefere que, quando mencionada a figura dela, trate de saudade. Ela é a personificação da saudade. Beto é estudante de Letras e, nos últimos dias, andou afogado nos livros de literatura, procurando esquivar-se das reminiscências que insistem em dar o ar da graça nas situações mais costumeiras. Lá se vão duas madrugadas varadas. O hálito de Beto é café puro, dá até para distinguir a marca. Os poucos que o conhecem andam estranhando as olheiras mais acentuadas que nunca. O tempo passa feito criança. Criança de rua, que bate carteira, relógio, pulseira, comida ! Comida para manter sua energia de batedor de carteira nos grandes centros, cheios de gente boa pinta e burguesa. Esses mesmos meninos são acordados aos berros pelos donos das lojas onde, nas calçadas, eles dormem, essa gente boa pinta. Beto vê essas crianças todos os dias. Vive no Sudeste. Onde gente burguesa cruza com criança de rua todo dia, assim como o tempo passa nas carreiras levando, ao longo do vento, essas histórias para gente como Beto. Beto disse ter enorme carinho em ler Capitães da Areia. — E aqui, leitor, faço questão de expôr diretamente minha opinião sobre a obra de Jorge Amado. Tive, assim como Beto, um sentimento de amor gigantesco durante a leitura maravilhosamente engrandecedora. Recomendo por demais. — Então, o rapaz vê as crianças de tal forma como visse um parente próximo. Embora, de tão descuidado que anda, perdera a carteira para um desses moleques há poucos dias.
Não lhe fez falta, apesar da vida de estudante. Imaginou que os garotos tenham se divertido com aqueles vinte e poucos reais. Imaginou que tenham compartilhado alguns pães pela noite, imaginou que tenham saciado parte da sede que lhes acomete todo mísero dia. Tais pensamentos arrancaram um leve sorriso e algumas lágrimas do rosto sonolento do rapaz. E, naquele dia, não fumou. Esperou bater as 5:00 h da manhã, pegou seu sobretudo velho, pôs a boina "à lá Neruda" e retirou-se do quarto onde permanecera alguns dias. Saiu de casa em direção ao litoral, onde seu Manoel já abria o quiosque. 
Cumprimentou seu Manoel, cordial como de costume. O velhote deu bom dia e um sorriso largo. Beto era cliente antigo. Tinha mania de passar horas no quiosque de seu Manoel, vendo a linda paisagem que se escondia logo atrás. Pediu um café e duas bolachas, como era seu hábito.
Então, perguntou seu Manoel:
— Que faz por aqui tão cedo, meu filho ?
— Precisava ver o sol de perto, seu Manoel.
— É lindo, não é, meu filho ?
Beto tinha apenas os olhos fixos no sol que ainda nascia aos poucos, apesar do horário. Seu Manoel teceu mais um ou dois elogios à natureza ali presente. O rapaz já estava metido em seus pensamentos, com olhos miúdos de quem não dorme há dias. O velhote trouxe-lhe um café, fez um também para si e sentou-se ao lado do garoto. Beto agradeceu, pôs duas colheres de açúcar e tornou a beber. Depois de uma ou duas goladas, acendeu um cigarro. Não tocou nas bolachas.
Seu Manoel perguntou:
— Há quantos dias não dorme, meu rapaz ?
— Três. Disse ele acompanhado de um leve sorriso seguido dum bocejo.
O velhote sorriu. Olhou o sol por uns instantes e a calmaria do mar. Era um dia lindo. Seu Manoel tinha uma vitrola velha que sempre o acompanhava por onde quer que fosse. Naquela hora, um homem com voz calma e grave, acompanhado dum violão estilo country, tocava na geringonça.
Seu Manoel era um velhote esperto, conhecia das malandragens e dramaturgias da vida, sabia bem o que era aquela falta de vontade estampada na expressão do rosto do rapaz. Claro, só podia ser.
— Quem é ela, meu filho ?
Beto tinha um cotovelo apoiado no balcão do quiosque e uma mão no queixo, com a outra rodeava a borda da xícara com o dedo indicador.
Ao ouvir o velhote, ficou imóvel. Ninguém, nem mesmo em casa, sabia o que se passava com o rapaz, nada notavam. Beto espantou-se a princípio. Fitou o velhote com certo ar de gratidão e respondeu:
— É a saudade, seu Manoel. Saudade dum abraço, dum beijo e duma fala com ternura. Uma fala que só a saudade tem agora, para não falar do resto...
Nos olhos miúdos de sono do rapaz, seu Manoel avistou de que se tratava o rapaz, e quase transbordou.
Beto conteve a carga de lembranças que estava tendo com uma golada seca no café já frio, como se bebesse cachaça.
— Eu te entendo, rapaz. Teve um tempo que fiquei feito tu. Mas, com uma diferença: no lugar do café, era cachaça. De resto, fumava e quase não dormia do mesmo jeito. Já fosse atrás ?
Beto achou graça na fala do velhote. Talvez por alívio de encontrar alguém que o entendera.
— E como fui. Só rejeição...
O velho se retirou do banco. Entrou no quiosque. Olhou no relógio e já passavam das 5:30. Fez outro café e o trouxe. Voltou a sentar-se no banco e pôs outra xícara em frente ao rapaz.
— Esse é por conta da casa. Disse.
Num instante, o velho puxou uma foto antiga do bolso. Comida pelo tempo e pelo contato constante ao qual era exposta.
— Pra tu ver que é verdade.
Pôs a foto ao lado da xícara de Beto. Era duma moça graciosa. Olhos claros, tom de verde mar, cabelos de cacho e um sorriso de uma ponta à outra, muitíssimo encantador. Atrás, datava de 1967, numa tinta bem apagada. 
— Tanto tempo assim ? Perguntou Beto espantado.
O velhote, olhando seguramente para o sol, disse:
— Meu maior erro, meu filho — e fez uma expressão triste retendo o olhar à xícara — foi nunca mais ter ido procurá-la. Quando era menino, assim na tua idade, eu era orgulhoso e vaidoso. Enquanto eu ouvia dizer que ela sofria, eu queria mesmo era esquecer aquela história. Nunca nada tinha me afetado como aquela história. Eu era quieto, bebia sozinho, em casa mesmo. Sempre gostei de poesia e era lendo elas que chorava noites inteiras.
Hoje — e parou um momento —...
Tomou um gole de café, reparou no sol outra vez.
continuou:
— Ela tem uma família toda. Volta e meia um filho dela vem aqui no quiosque tomar uma água de coco. Cada rapaz alto, bem apessoado, parecidos com ela. Ora comentam que a mãe falava que conhecera um rapaz na juventude e que amara o rapaz como ninguém. Mas pede segredo aos filhos e diz que é um velhote que tem um quiosque na praia. Os garotos até fazem ideia de que eu seja o tal velhote, mas eu sempre nego, mudando de assunto.
E eu, meu rapaz, eu só tenho esse quiosque e uma casinha mais pro interior.
Beto o olhava pálido, boquiaberto. Não fazia ideia que aquele velhote tão alegre passara por tal situação. Esqueceu o café e deixou cair o cigarro. Quis falar, mas travou.
O velhote riu e deu o ultimato:
— Não se incomode tanto com as rejeições , meu rapaz. Sei que doem, mas você pode ser mais forte que elas, mesmo que tenha de se esforçar.
Vá e faça dela e com ela sua família. E só apareça no meu quiosque para me apresentá-la. O café será por minha conta.


MACÊDO, Gustavo de.

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