Pages

sábado, 1 de novembro de 2014

UM SONHO


De súbito, Jorge acordou duma sucessão de imagens terríveis. Pobre Jorge. Há muito não dorme, não é mais o mesmo. A rotina o definha devagar, mansamente. Só ele não percebia... Até a madrugada de 31 pro dia 01 de novembro. Isso. Mês onze, mês novo, mês de renovação. É mesmo interessante a ideia de que, a cada novo mês, se abre uma nova porta para a realidade. Tem também aqueles que acreditam que isso ocorre dum dia pro outro. Vai saber. O fato é que Jorge não via nada de novo. Batiam ali, seguramente, como em todos os outros dias que se passaram, 3:00 h da manhã. Parecia um ciclo. Jorge não sabia ao certo seu início. Muito menos o fim. Pobre Jorge. Tentou dormir de novo. Foi inútil. Deu 3:30, 4:00, 4:30. Não. Agora, ele tinha de tomar uma providência. Estava complicada a coisa. Claro. Levantou-se, fez um café e se pôs a escutar Los Hermanos num velho fone de ouvido que só prestava um lado. Começou a negar tudo aquilo que tinha visto. "Foi terrível", pensava. Jorge estava mesmo farto dessa cenazinha repetida. Estava cansado, o corpo doía, a cabeça, por vezes, dava marteladas internas numa tentativa de comunicar ao desgraçado que ele já estava abusando demais. Jorge estava mesmo extrapolando. Se dormisse, era um ato quase involuntário. Até aí tudo bem. Complicado mesmo era todo aquele confinamento. Mas, antes disso, o que fazia esse sujeito durante todo esse tempo de virgília ?
Devorava, progressivamente, os livros de literatura que dispunha. Era mesmo um apaixonado por contos, crônicas, romances. Quando uma ou outra leitura o causava tédio, ele recorria às crônicas de Luís Fernando Veríssimo e soltava gargalhadas contidas por conta do horário. Era estudante do curso de filosofia duma universidade local. Mas não ia à faculdade há meses, pois os professores da rede pública estavam todos de greve. Jorge achava um tanto chata aquela situação, porque o atrasava em sua formação acadêmica. Mas, por outro lado, apoiava com sensatez e afinco os professores, pois sabia do descaso, que já se estendia há um certo tempo, para com a classe. No fim das contas, foi até melhor a paralisação. Jorge estava tão emergido em suas reflexões filosóficas que estava dificultando o contato com outras pessoas. Ora, não é mesmo bom exagerar e reter-se apenas numa coisa, visto que há tantas outras para se explorar. Foi então que Jorge entregou-se aos livros de literatura. Não sei bem se entendeu a mensagem...
Jorge era novo, mas, principalmente ultimamente, andava com um aspecto envelhecido, com o cansaço estampado na cara.
Decidiu sair de casa numa noite dessas. Foi numa exposição cultural de um colégio de sua cidade. Chegando lá, encontrou um conhecido e pôs-se a conversar com o fulano. Conversa vai, conversa vem e eis que, depois de Jorge expôr a situação na qual se encontrava, o sujeito diz:
— Bicho, tu vai ficar doido. E sorri.
Jorge sorri e, saindo, diz:
— Tomara que daqui pra lá eu já tenha escrito uns quatro livros.
Ah, é. Este é um detalhe que quase me escapou. Jorge era escritor. E passava por uma nova fase, turbulenta, mas interessante. Passado aquele encontro, olhou ao redor e nada o chamava atenção. Não pensou duas vezes. Voltou para casa. Foi chegando e logo deitou-se, pois suas pernas o maltratavam por conta daquele meio tempo que passou caminhando e em pé. Apagou. Não sabe quando, como, mas sabe o porquê. A cena se repete. Mais uma vez, despertou repentinamente. Às 3:00 h da manhã. Fez todo aquele seu ritual e já umas 5:10 foi lá dentro de casa esquentar o café. Quando regressava ao quarto, reparou no céu. Estava lindo. Pequenas nuvenzinhas brancas cobriam aquele manto gigante e azulado. De modo que se via apenas umas brechas de todo aquele mar de cima. Já no quarto, pôs "Mon Nom", de Rodrigo Amarante. Jorge apreciava bastante o francês e as canções de Rodrigo. Foi então que resolveu tirar aquelas cenas que, desta vez, o fizeram acordar. Jogou-as nuns pedações de papel que sempre costumava rabiscar.
O que se passou então ?
Naquela noite...
Antes disso, há um outro detalhe que quase me esqueci. Jorge vinha passando por um momento delicado. Até aqui, não há algum segredo. Curiosa é a participação de uma mulher na vida de Jorge. Clarice. Ah, Clarice...
Não faz muito tempo. Jorge conhecera uma tal de Clarice na faculdade. Os dois se aproximaram e se identificaram bastante quase que de imediato. Foi tão natural que Jorge a convidou para sair com mais ou menos uma semana de conversa. Se iniciava então o início dum amor.
Era uma tarde ensolarada de Junho, uma quinta-feira, dum ano que me falha a memória. O fato é que foi esse dia que Jorge jamais esqueceu.
Clarice sempre fora uma moça linda e adorável. Eram incríveis os olhos dela quando via a figura barbuda e baixa de Jorge. Apesar de serem praticamente da mesma altura, ela sempre caçoava dele por ele ser baixinho. Jorge abria o largo sorriso. Adorava sorrir com Clarice. Adorava estar com ela, mesmo que nada fizessem. Só em ver o tempo passar ao lado dela era motivo duma expressão abobalhada que Jorge carregava para onde quer que fosse. Sem dúvidas, aquela cara de idiota era culpa dela e somente dela. Duraram pouco mais de seis meses juntos. Após a separação, ela mudou de curso. Sempre sonhou mesmo em ser psicóloga. Seguiu adiante então. Essa história pede outro conto ou, simplesmente, se encontra fragmentada pelos contos que Jorge produziu desde então.
E naquela noite, Jorge acordou com uma expressão de tristeza mais acentuada que nunca. Queria chorar, não sei se o fez. Sonhara que Clarice deixava de ser completamente quem um dia Jorge conheceu. Não era Clarice, não podia ser. No fundo, depois de grandes conflitos consigo mesmo, talvez, embora não quisesse, acreditava que Clarice já não era mais aquela Clarice. Não era mais sua e estava mesmo muitíssimo longe de ser, quiçá, outra vez.
Foi um sonho tenebroso. Daquele que se lembra os mínimos detalhes. Via a imagem da moça por completa desfigurada. Agora, ela tinha uma tatuagem na lateral esquerda da mão esquerda. Era algo escrito em francês, por ironia. Mais irônico ainda é o fato de , deste pormenor, Jorge não recordar muito bem. Forçou sua memória, de fato a espremeu, mas, por azar, nada saiu. Foram várias as hipóteses que formulou do que seria aquela possível palavra ou palavras. Ficou entre duas. Poderia ser algo do tipo: "Não há mais sentido persistir em algo passado", ou, "No fundo, eu ainda espero te encontrar. Corra, nem tudo está perdido."
E Jorge, depois de duas xícaras de café e várias meditações, saiu do quarto para olhar mais uma vez o céu. Estava mais aberto, mais convidativo.
As circunstâncias nada eram favoráveis. Um pingo de otimismo era algo irracional. E daquelas duas frases, Jorge gostou mesmo foi da segunda. Pensou nela mais uma vez e sorriu.


MACÊDO, Gustavo de.

Nenhum comentário:

Postar um comentário